terça-feira, janeiro 02, 2007

Capítulo Dois - As Cataratas Sagradas

As Cataratas Sagradas

“O dom da palavra repartido entre todos, fará circular de novo palavras que nunca haverão de desaparecer ... Se converterão em orações para pedir a vinda dos que resgatam o dizer”

Pe. Bartomeu Melià


Para os guaranis as Cataratas do Iguaçu são um lugar sagrado. São sagradas por serem um lugar de lembrança . Em cerimônias que são cada vez mais raras, ou totalmente raras, eles vêm a esta sagrada manifestação para “lembrar”. E isso acontece mesmo que suas mentes conscientes não lembrem de nada. A lembrança que eles vêm buscar está no ar. E está disponível a todos. Com nossas mentes holográficas, todos temos acesso a tudo o que aconteceu no universo. Sabemos todos os saberes. Já escutamos, vimos, sentimos, fizemos tudo.

Mesmo para os visitantes não-guaranis deste lugar sagrado, ou de qualquer outro, as lembranças chegam em forma de emoções fortes, lágrimas, uma abertura súbita de coração, um novo ânimo para a vida. Um arrepio. Uma vontade de se molhar na Neblina. Uma vontade de amar. Um sorriso. Um abraço.

A primeira lembrança é a de que somos partes desta manifestação gloriosa. Que somos parte de alguma coisa grande. A maioria se lembra de Deus – cada um à sua maneira. Líderes religiosos fazem orações. Outros deixam placas, pequenos monumentos e outras lembranças que denunciam a conspiração silenciosa do desejo humano de paz, felicidade, união e integração. Apaixonados se beijam e já foram muitos os que decidiram se casar sob a Neblina Criativa.

Os guaranis se lembram da criação tal como é contada pelas “Belas Palavras” – a história da criação do universo, da terra, da Via Láctea. Ver as Cataratas é ver a manifestação de Nhamandú. Nhamandú é o supremo, é a grande inteligência universal. Segundo as Belas Palavras, a primeira coisa que Nhamandú criou fora de si mesmo, foi o “fundamento da linguagem humana”. A segunda foi “uma pequena porção de amor”. Em seguida teceu um hino. Tão importantes eram estas três coisas que Ele as quis compartilhar. Com quem as compartilharia?

Com seus futuros filhos e filhas. Mas ao contrário de outros mitos da criação, Nhamandú não cria diretamente a humanidade. Ele cria primeiro os guardiões, os seres especiais que esses sim, criariam a humanidade. Assim Nhamandú criou um guardião e uma guardiã, da mais alta categoria aos quais chamou de Nhamandú Py’á Guaçu – ou Nhamandú de Coração Grande. Criou outro casal de guardiões ao qual chamou Jakairá. Criou um terceiro par de guardião chamado por Ele de Karaí. E finalmente criou mais um casal de guardiões a quem chamou Tupã. A cada casal foi designado um paraíso. Quatro casais de guardiões criou. Foram esses casais de guardiões que criaram os filhos de Nhamandu – a raça humana.

As três coisas que Nhamandú criou: a palavra, o amor e o hino são de muita importância na Terra Guarani. A palavra porque ela é criadora. O que cristãos, judeus e muçulmanos não podem discordar. Deus, segundo o Gênese, também criou tudo com a palavra. “E Deus disse haja luz, e a luz se fez”. O amor é importante porque ele é o reflexo de seu coração. Para os cristãos, o amor deveria ter a mesma importância que tem para os guaranis. Antes de haver sol e lua, Nhamandú se iluminava com o reflexo do amor de seu próprio coração. O amor foi o primeiro sol. Já o hino, é importante porque por ele sabemos destas coisas.

O mundo está com problemas porque as três primeiras coisas que Nhamandú criou estão com problemas. A palavra perdeu o sentido. O coração se bifurcou e o hino está silenciado. A palavra perdeu a mágica. Está vazia e sem coração. Sobre a palavra, o pajé, conferencista e terapeuta guarani Kaka Werá Jecupê diz:

“(...) Enquanto isso, o espaço entre a idéia e a atitude tem gerado a miséria humana. A palavra corre pelo governo humano sem espírito, sem cumprimento do que se diz. Pois palavra e espírito estão longe. A voz sai morta. Porém recheada de maquilagem para dar impressão de vida. A palavra assina tratado de Paz enquanto a mão acena guerra. A religião é surda, pois o espírito está morto.”

Essa morte da palavra pode ser vista em toda parte. Em nossa prolífica e eloqüente comunicação de massa. Na abundância de palavras. A palavra é manipulada e transformada em persuasão. O amor também foi enterrado pelas cachoeiras de palavras sem significado despejadas pela política, pela economia, pelas ciências, pelos dogmas, pelas religiões e especialmente pelo materialismo. Jesus alertou: “E por causa do aumento do que é contra lei, o amor da maioria esfriará”. O guarani diz a mesma coisa de outra maneira: “O amor se bifurcará”. E o amor também perdeu o sentido, tanto na palavra quanto na prática. O amor não é só sentimento. É um estado dinâmico de consciência. Por isso, a importância do amor. É o único mandamento que Cristo deixou: amai ao próximo. Mas especialmente, amai a ti mesmo. Amar a si e aos outros não de cabeça mas naquele estado dinâmico, naquela vibração que é o amor. Já o hino, quer seja o guarani ou qualquer outro hino ou música curativa, também silenciou. Está faltando música, hino, o canto no mundo.

Para ilustrar a importância da palavra, não só para os guaranis, mas, para todos os povos indígenas, e para mostrar a interconexão surpreendente que há entre todos os povos primitivos – no sentido de primeiros – compartilhemos alguns trechos da cosmovisão ou visão de mundo do povo huitoto – que habita áreas da Amazônia, hoje sob as bandeiras das repúblicas do Peru e Colômbia. Diz a estória-sonho:

“No início, não havia nada. Nem tempo, nem espaço. Nem deserto, nem oceano. Nem águia, nem floresta, nem montanha. A escuridão era vazia, silenciosa e parada. Então uma palavra navegou através do silêncio. A palavra era 'Pai'. Um ser surgiu da palavra 'Pai' e se tornou o Pai Nai-mu-ena.

Nai-mu-ena respirava. Ele pensava palavras. Ele dormia. Certa vez, uma sombra cintilante de algo serpenteou através da escuridão de seu sonho, como um outro sonho repentino dentro do sonho que ele estava sonhando. Ele tentou pegar esta sombra com sua mente e se agarrou a ela.

Mas a sombra cintilante que havia sido jorrada do escuro de seus sonhos não podia ser presa ou fixada a nada. Ele não podia pressioná-la com uma pedra, ou escorá-la com um pedaço de pau, porque nada existia ainda. Ele não tinha uma caixa ou uma caverna para guardá-la. Ele tinha medo que a sombra pudesse se desvanecer, de volta ao nada.

Então ele sacou de seu pensamento, como uma linha de algodão cru, o fio de uma idéia. Ele tirou a palavra 'Terra' de seu pensamento, e a pressionou na sombra cintilante, a sombra brilhante que ele sonhara se tornou o primeiro solo, o chão da Terra. Ele havia sonhado isto para a realidade. A Terra havia começado.

Então ele criou um outro ser, Rafu-ema, para ser o dono de todas as estórias. Rafu-ema se sentou em um espaço debaixo do céu e confeccionou esta estória em sua mente, para que assim nós pudéssemos escutá-la aqui na terra”.

Como vimos, Nai-mu-ena, criava enquanto pensava palavras. Destaquemos a beleza dessas figuras de pensamento: “uma palavra navegava pelo silêncio”, “um ser surgiu da palavra”. Observemos a relação entre respirar, pensar, sonhar e criar. Como Nai-mu-ena puxou o fio de uma idéia e tirou dela a palavra “Terra” e efetivamente a criou. Tudo isso mostra a importância da palavra. A importância das estórias.

E agora, voltando à Terra das Cataratas, a terra que encerra dentro de si, a lembrança da criação do universo, continuemos com as Belas Palavras que é a visão de mundo mby’á guarani . Além de ter sido uma das primeiras criações de Nhamandú, a palavra (ñe’ẽ em guarani) também se confunde com a própria existência. Ñe’ẽ significa tanto palavra como alma. Nós somos palavras-almas. Palavras que se materializaram e adquiriram consistência física. Daí a importância que deve ser dada às nossas palavras. Após ter criado os quatro casais guardiões, Nhamandú infundiu em cada um deles a “consciência de sua divindade.”

Eis mais uma boa lembrança que todos somos convidados a ter nas Cataratas do Iguaçu como um Lugar Sagrado. A consciência da divindade que Nhamandú infundiu nos nossos primeiros pais, continua em cada um de nós. Foi parte de sua criação. Também esquecemos desta verdade universal. Somos consciência divina. A consciência divina está infundida em nós. Ou como dizem os hindus, somos centelhas, chamas divinas do oceano de energia universal.
Depois de terem recebido a infusão da consciência de sua divindade, Nhamandú deu a cada um dos novos pais e das novas mães responsabilidades específicas. Quais são as atividades e o passatempo dos pais da humanidade segundo o Canto Sagrado Guarani? É o que veremos no capítulo seguinte.

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