terça-feira, janeiro 02, 2007

Prólogo Dois

Sobre os nomes

“Mas... não há nada na natureza que responda a nossas palavras”
– William James
(um dos pais da psicologia moderna)


Até este ponto, a palavra “Cataratas do Iguaçu” vem aparecendo entre “aspas”. Isso acontece porque, a partir daqui, evitaremos palavras que perderam a vida, quer pelo seu uso excessivo, ou, pela falta de espírito nelas. A palavra é um dos maiores dons da humanidade e elas nascem carregadas de energia. Com o passar do tempo, as palavras podem perder energia, vitalidade e se transformarem em simples “barulhos”. Nesta visão da Sombra da Neblina, a palavra “Cataratas”, parece estar entre esses milhões de vocábulos barulhentos que perderam magnetismo. No mundo moderno, amor, esperança, alegria, felicidade, progresso, ecologia, são outros exemplos de palavras que perderam seu vigor.

O que se chama de “Cataratas” não é nada mais que o acidente geográfico facilmente explicado pela geologia – um dos fragmentos de nossa ciência. Segundo esta visão geológica, as “Cataratas” não passam de um afundamento ocorrido na superfície das rochas basálticas que cobrem 734,000 km2 da porção brasileira da Bacia do (Rio) Paraná, correspondente à formação geológica conhecida como “Serra Geral”. (No Mercosul a área coberta pelas rochas basálticas é de 1.100.000 km2). As rochas foram formadas pelo maior evento vulcanogênico registrado no Planeta. Não por uma erupção vulcânica, mas sim pela expulsão de magma através de fendas ou fissuras que se abriam na superfície da Terra.

O magma vomitado das entranhas do Planeta, quando em contato com a atmosfera, esfriava, dando origem à lava que mais tarde se transformaria em pedras. As pedras que vemos são magmas resfriados. O cânion do rio Iguaçu foi escavado porque as rochas originadas da lava eram mais fracas nesta região. Por isso, após milhares de anos, a água causou uma erosão regressiva. Quer dizer a água, de tanto bater, furou a pedra que retrocedeu. As “Cataratas” primitivas deveriam ficar no local onde o rio Iguaçu e o Paraná se encontram e que hoje é conhecido como Marco (ou Hito) das Três Fronteiras.

Em 20 mil anos, elas poderão estar totalmente no (que hoje se chama) lado argentino. Poderão estar no (que hoje se chama de) lado brasileiro ou poderão até secar – se o rio Iguaçu continuar a ser maltratado desde as suas múltiplas nascentes até sua desembocadura. Em um parágrafo se pode dizer quase tudo sobre o nascimento, paixão e a morte das “Cataratas do Iguaçu”. Porém isso não basta. Não preenche e tampouco eleva nossos espíritos.

As línguas humanas são um dos maiores fenômenos a ter acontecido no Planeta. São altamente simbólicas e, ao mesmo tempo, imperfeitas. George I. Gurdieff chamou a “palavra” de “fantástico absurdo cacofônico”. E como observou o pajé Kaka Werá, a palavra perdeu o sentido pelo mau uso ou pelo abuso delas. Se analisarmos a origem da palavra “Cataratas” vamos terminar admitindo que Gurdieff tinha razão.

A palavra “cataratas” vem do grego. A raiz da palavra (katarrh), é a mesma da palavra “catarro”. A imagem original, por trás desta palavra, era a de alguma coisa que fluía, escorria para baixo. Os gregos só conheceram Cataratas na África. Especificamente as Cataratas do Rio Nilo. “Catadupa” é outra palavra grega que serve como alternativa a Cataratas e é usada no Hino oficial de Foz do Iguaçu quando diz “Catadupa surgi da Neblina!”

As Cataratas do Rio Nilo eram chamadas de “Catadupas do Rio Nilo” e o povo que vivia na região das Cataratas do Nilo, eram chamados de “catadupos”. O mesmo pode ser dito do povo catadupo da Terra das Muitas Águas. A origem da palavra “catadupa” também é interessante.

A palavra tenta representar o som de um corpo caindo do alto. Seria mui educativo escutar a conversa original de um grego que retornasse do Nilo tentando explicar a alguém, da Ilha de Creta, o que é uma grande Catarata. – “É muita água que escorre pela pedra. É como um grande nariz de onde escorre alguma espécie de líquido. E a água cai, lá de cima, fazendo um barulho: catadúp! Como se a gente jogasse o corpo do inimigo”.


Na visão holística, visão cósmica que este livro pretende passar, palavras baseadas em imagens de corpos caindo, fazendo barulho nas pedras, ou, de nariz gigantesco com gripe crônica não fazem justiça a este Santuário, a este Lugar de Paz e Poder. Assim, a partir daqui, este Lugar Sagrado será chamado de “Fonte da Neblina Criativa” ou simplesmente “Y–Guaçu”. Água Grande. A fina Neblina Criativa é uma das duas fontes de Poder e Paz que Nhamandú, Nosso Pai, grande, o verdadeiro, doou a seus filhos e filhas que um dia deveriam encher a terra. A outra fonte dada por Nhamandú, foram as “chamas” crepitantes que juntas deveriam proporcionar conhecimento, esclarecimento, calma, ciência e iluminação.

Não é necessário muito esforço para se descobrir a Neblina nas Águas Grandes. A Neblina se forma na base da maioria dos saltos ou manifestações da grande criação. As Chamas e a Tênue Neblina são descritas no Canto Sagrado Mby’á Guarani. A Nação Guarani tinha, e tem, uma visão global da Terra de Nhamandú. A fina Neblina se encontra em todos os países, em todos rios, sobre todas as florestas. Porém Y-Guaçu é uma fonte de proporções, formas e presença incomparáveis. Além da suprema e inquestionável Y-Guaçu como Fonte da Neblina Criativa ou “Creadoura” - a Terra onde se encontra a Fonte da Neblina Criativa tem a oferecer, ainda, aos buscadores de si mesmos e da Neblina, inúmeras outras fontes menores – entre as menores, a maior é o Salto ou “Manifestação” das Águas Roubadas ou Salto Monday.

O que os Guaranis vêem como a Neblina – é o mesmo que os hindus vêem como o Prana – energia vital respirável, que está por toda parte do universo e dentro de nós mesmos. Vêem-na também como aquela fonte de belas palavras que são os níveis superiores da existência multidimensional. Assim dizer que as Cataratas do Iguaçu são a Fonte da Neblina Criativa é o mesmo que dizer que as Cataratas são Fonte de Prana ou Fonte de Energia, fonte de inspiração que nos pode dar criatividade espiritual, estética, cultural, mental que o mundo tanto necessita, hoje e com urgência. E criatividade aqui vem de uma palavra que é um misto de conhecimento com clareza.

Infelizmente, a Y-Guaçu – Fonte da Neblina Criativa, além de ser chamada de “Cataratas do Iguaçu” , cachoeiras, e saltos ainda foram fragmentadas, contabilizadas e medida em outros sentidos. Foi dividida entre dois países. Por isso, no linguajar do turismo materialista de massa, se fala de “Cataratas Argentinas” e “Cataratas Brasileiras”.

Viajantes desavisados podem acreditar que se está falando de Cataratas diferentes e não tão somente de lados de um lugar único e indivisível. Esta divisão é anti-natural e muito ingênua. Seria a mesma coisa que considerar um corpo como sendo dois por aparentar estar dividido em lado esquerdo e direito.

Mas além desta “visão” da “(di)visão”, a Fonte da Neblina foi também dividida em saltos e sofre a tentativa de quantificação deles. São 175 saltos. Há quem diga 275. Mediram-na em metros cúbicos, em litros e em galões. E ainda deram nomes aos “saltos”. Hoje temos: Salto Ramírez, Bejaruna, Bosetti, Cabeza de Vaca, General San Martín, Rivadavia, General Belgrano, General Peñon, General Mitre, Benjamin Constant, Marechal Floriano, Tres Mosqueteros e Garganta do Diabo /Garganta del Diablo – só para mencionar os que levam nomes masculinos, de militares, exploradores ou de pervertedores – o que é o caso do último personagem citado.

Eis uma amostra do poder da fragmentação imposta a cada centímetro do Planeta. Os povos chamados primitivos evitam dar nomes, de maneira leviana, às coisas. Não é o que ocorre com a civilização européia. Semeadores de nomes saíram pelo mundo a semear. Alvar Núñez Cabeza de Vaca nomeou a Fonte da Neblina Criativa de Saltos de Santa Maria del Iguazú. Para os nome como este. No dialeto Mby’á do idioma guarani, Diabo é chamado de Mba’é Pochy e significa “Coisa Raivosa”.

Os índios nunca pensariam em presentear o “Coisa Raivosa” com o que há de mais belo e majestoso na Terra de Nhamandú. Mesmo admitindo que vivamos uma fragmentação terrível das coisas, batizar a maior manifestação da Deusa e Fonte da Neblina Criativa como Garganta do Diabo é, no mínimo, muito estranho. E curioso.

Esse cuidado especial para não deixar o Senhor Diabo sem um lugar de honra na lista dos heróis argentino-brasileiros, faz lembrar o conto “Satanás” de Gilbran Khalil Gilbran. Gilbran conta que Padre Simão, fervoroso pregador que percorria as aldeias do Líbano, um dia encontrou o Satanás caído, à beira de um caminho, quase morto, desidratado, faminto, doente. Este, aos berros pedia ajuda ao padre para não morrer abandonado. Quando o padre finalmente reconheceu que o moribundo era o Diabo, ele o amaldiçoou e ameaçou prosseguir viagem. Mas o Satanás argumentou:

- “Não sabes o que dizes, e não calculas o crime que cometes contra ti mesmo. Eu fui e continuo ser a causa de teu bem-estar e de tua felicidade...não foi minha existência a justificação da profissão que escolheste, e meu nome o lema de tua vida? Que outra profissão abraçarias, se o destino decretasse a minha morte e os ventos desvanecessem o meu nome? Que outra coisa comprariam de ti amanhã, se soubessem que o inimigo morreu e que estão livres dos seus malefícios?”.

Depois disso, e depois de uma conversação mais reveladora ainda, conta Gilbran: “...o padre Simão aproximou-se do Demônio, carregou-o às costas e prosseguiu no seu caminho.”



Nesta nossa proposta, a das Cataratas como a “Sagrada Fonte da Neblina Criativa”, a Y-Guaçu aparece como o que realmente é: uma suprema manifestação do princípio feminino do universo. E esse princípio feminino, manifestado aqui, está equilibrado com o princípio masculino. Não é o que está acontecendo no mundo. Nos últimos cinco mil anos, o mundo tem recebido uma carga excessiva de masculinidade nas suas instituições civis, burocráticas, militares, pedagógicas, econômicas e religiosas.

O que chamamos de “Cataratas”, na linguagem do dia-a-dia, só existe porque há uma fusão do rio com a fenda aberta por poderosas forças geológicas. Durante o curto trajeto do espaço e do tempo em que o rio despenca, se lança, e está fundido na fenda feminina, ele renuncia seu papel de rio. Ele deixa de ser rio. E aceita ser somente água. Nada mais que água líquida que gera a Neblina Criativa, a vida, a paz e a cura. Ao contemplar as Cataratas, quem se lembra de estar vendo um rio? O rio não é mais o rio. Pelo menos enquanto está fundido naquele espaço que chamamos Cataratas.


As águas, o rio e a manifestação feminina que são a “Fonte da Neblina Criativa” estão fundidos. Mas são as “Cataratas” femininas que comandam. E essa é a lembrança que se leva para a casa. As “Cataratas” não estão interessadas em mostrar seu poder de forma bruta, pelo seu volume de água, pelos números de seus “acidentes”. Elas mostram seu poder, seu domínio, pela beleza e criatividade e pelo amor que inspiram. Estão interessadas em gerar bem-estar, assombro, emoção, transformação e cura para todos os que a visitam, que a elas vêm e que a elas destinam carinho.

Por isso, ser a Fonte da Neblina Criativa, um Lugar de Paz e Poder, como veremos adiante. É este também o motivo de propormos a “demissão” pacífica, voluntária e pessoal dos nomes utilizados para nomearem os seus “saltos”. Para substituí-los propomos que não usemos nome nenhum. Que seja o inominado e que entendamos os seus verdadeiros e inumeráveis nomes não-verbalizados. Que ressoemos com a Fonte. Que descubramos suas vibrações e vibremos com ela. O ato de nomear por nomear, nada significa. Pelo contrário, pode conter sinais que revelam o nosso interior, nossa visão de mundo e nossa disposição interior. Nomear algo é produzir, criar algo. Os nomes que têm sido usados até hoje, nada ajudaram a criar.

Dar um nome a alguma coisa “...é dar uma manifestação exterior ao que se acha em nosso interior”. É muito perigoso em termos de energia. Por isso, que o ato de nomear seja pessoal. A poderosa e majestosa Y-Guaçu não é vista do mesmo jeito por duas pessoas. O ato de ver é pessoal. As Cataratas, o mar, a selva, o rio, o gelo, a mulher deusa, o homem divino tudo é visto com exclusividade. Temos a ilusão de que todos vemos a mesma coisa quando olhamos para o mesmo objeto. Dê você os seus próprios nomes para as coisas que você vê – e guarde esses nomes para você.

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